Bem-vindo, viajantes! Puxem umas cadeiras ou sentem no chão que o ladino aqui vai apresentar algumas artimanhas para impressionar seus companheiros de aventuras. É bom que os bardos fiquem de olhos bem abertos, pois suas histórias irão atrair mais peças de ouro e corações apaixonados; as dicas a seguir serão sobre imersão na narrativa literária. “Mas o que diabos é isso, meu explorador?” é o que você deve estar pensando agora. Calma lá, meu aldeão! Pegue seu hidromel e preste atenção.
Narração em 2ª pessoa.
Bora lá! Para começar, leiam este trecho a seguir retirado do conto A Queda da Casa de Usher, do escritor Edgar Allan Poe:
“Por todo um dia triste, sombrio e silente de outono, em que as nuvens baixas pairavam opressivamente no céu, eu estivera percorrendo solitário, a cavalo, uma região singularmente lúgubre, até que afinal me encontrei, ao caírem as sombras da noite, à vista da melancólica Casa de Usher. […] Olhei para a cena à minha frente — para a casa nua e os traços simples da paisagem daquele domínio — para as frias paredes negras — para as janelas como olhos vagos — para os juncos enfileirados — e para uns poucos troncos esbranquiçados de árvores decadentes […]”
Eu decidi usar Poe como exemplo, pois a grande parte dos seus contos são narrados em primeira pessoa, deixando o leitor mais próximo do autor. Esse tipo de narrativa compartilha a visão do narrador com a do leitor, ou ouvinte, caso seja uma narrativa oral, e é a mais indicada para trazer uma boa imersão em suas histórias. Porém, trazendo para o RPG especificamente, o narrador irá narrar em segunda pessoa, isto é, usando o “você”, não o “eu” — a não ser que esteja interpretando um NPC. Vamos ao exemplo abaixo de quando um dos meus jogadores caiu a 0 PV num combate:
— Você está lá lutando, então tomou uma pancada da cimitarra do goblin que foi suficiente para te exaurir. Sua visão começa a girar e o contorno do inimigo vai ficando embaçado, assim como tudo à sua volta. Então você sente a sua armadura mais pesada, levando seus ombros para baixo e você não tem força restante para levantar seu escudo e seu martelo. Seus joelhos tremem e cedem perante seu peso, caindo aos pés do inimigo. Seu rosto agora encosta no piso frio da ponte, e apenas o som do riacho abaixo está sendo ouvido. Mesmo contra sua vontade, seus olhos vão fechando e a escuridão vem de encontro à sua mente, deixando você incapacitado.
Existe também um modo mais rápido e simples — mas muito simples mesmo — de narrar essa mesma cena, que seria o seguinte:
– O goblin acertou você com a cimitarra dele.
– Beleza. Fui a 0 de PV.
– Certo. Você caiu então. Próximo agora.
Ok, em ambas situações acima o mestre narra em segunda pessoa, mas qual seria a diferença principal entre uma e outra, além da quantidade exorbitante de palavras? Detalhes nos fatos, meus gnomos barbados! Quando o mestre detalha essas coisas, ele entra nas mentes dos jogadores com mais facilidade, e é nesse momento que irão se arrepiar, pois é como se eles mesmos estivessem presente na situação.
Detalhes narrativos
No RPG de mesa dificilmente vocês não terão tantos elementos visuais para situar os jogadores, então é essencial que vocês mostrem o que há ali, não apenas dizer informações. “Como assim, bicho? O que você quer abordar com mostrar e dizer? Se não há elementos visuais, como você está mostrando algo?”. “Mostrar” aqui está no sentido de “deixar evidente”. Por exemplo, uma coisa é falar que na minha casa eu tenho um bonito jardim, outra coisa é falar que na minha casa eu tenho um bonito jardim com uma gama de flores, dentre elas orquídeas azuis, lírios brancos e tulipas vermelhas e roxas, sobre um gramado verdíssimo e vívido; nas paredes amarelas e sob o alpendre têm lindas samambaias suspensas. Viu? Eu vos “mostrei” o que tenho no meu jardim sem que vocês estejam presentes ou vendo uma foto.
Mas então, por que muitos mestres — geralmente iniciantes — narram dessa forma tão…seca? Por conta do contexto que estamos acostumados, no qual está repleto de coisas cinematográficas. Quando vocês estão assistindo um filme ou série, os personagens ou narrador — seja ele também personagem ou não — não precisam dizer os elementos visuais que estão ali porque vocês já estão olhando para eles. É o mesmo caso com RPGs eletrônicos; estão ali em evidência todas as informações que vocês precisam saber. Consequentemente, não é necessário imaginar muita coisa quando os elementos essenciais já estão à sua frente, sacas? É por isso que o narrador de RPG precisa ser detalhista e trabalhar a imaginação dos jogadores.
Entretanto vejam bem, meus anões desdentados! Esse tipo de narrativa mais cinematográfica não é ruim, ela apenas depende do ritmo. Vocês não precisam falar quantas formigas os jogadores estão pisando a cada passo dado por eles, porque aí suas narrativas ficam cansativas e eventualmente vocês também irão cansar. Guardem a forma mais “literária” de narrar para cenas de maior relevância para suas aventuras. Isto é, se os jogadores adentram uma cidade, descrevam da melhor forma que puderem conforme eles caminham por ela, daí depois que eles estiverem ambientados no local, vocês já podem narrar os elementos de forma cinematográfica, para aumentar o ritmo da sua história.
Exemplo:
[Os jogadores chegam ao território pela primeira vez]
— Vocês caminham pelas terras secas e quentes de Kenethus e o sol castiga seus corpos como um carrasco infernal. O suor ensopa seus cabelos drasticamente e escorre pela testa, caindo aos seus lábios aquele gosto salgado, que infelizmente os lembra que estão quase sem água; esse mesmo suor encharca suas vestes e as tornam mais pesadas, limitando cada passo andado. A essa altura, a pele já está queimada e irrita sob qualquer toque. Aos que usam armadura, vocês sentem que estão cozinhando igual carne em caldeirão tampado. É como falaram para vocês há uma semana: “ir para Kenethus durante o verão é a prova de coragem e estupidez na mesma proporção”. Mas enfim, não podiam esperar menos dos domínios áridos e escaldantes do réptil alado e flamejante chamado Kalangho, o lagarto de brasa.
[Os jogadores agora passam pelo lugar novamente]
— Vocês resolveram os problemas de Kenethus e agora passam pelos terrenos áridos novamente. Já sabem como é o território, passam por poucos problemas dessa vez, porque já estão mais experientes e atentos. Depois de um tempo saem desse território e chegam onde precisam.
A diferença aqui é simples: vocês irão ser detalhistas quando a cena for relevante para a história, e isso inclui a apresentação de uma nova cidade ou do salão faustoso do lorde vampiro que há muito espera os personagens. Raciocinem bem, a viagem de uma cidade a outra é importante? Tem coisas a serem exploradas no caminho? Caso sim, detalhe bem os elementos da jornada; caso não, diga o tempo que eles ficaram na estrada, pergunte o que vão fazer nesse meio tempo — uma chance de roleplay é interessante nessas horas — e pule para a cena da outra cidade.
Narrando de forma literária (aumentando a imersão)
Vamos lá, imaginem que vocês são uns magos e os detalhes da aventura serão suas magias a serem preparadas. Agora é imaginar, procurar por imagens e permitir-se fluir também, sem medo de travar. É o momento de ensaio. Definam quais locais são mais importantes na ambientação e esses vocês irão caprichar da maneira que podem. Vamos começar devagar, usando uma taverna, tudo bem?
a) Qual o nome da taverna? b) Quem é o dono? c) Ele cuida sozinho do local? d) Qual o tamanho da estrutura? e) Estará movimentada na hora que os personagens entram? f) Ela é limpa ou suja? g) O que chama atenção quando alguém entra nela? h) Que tipo de bebida e alimento podem ser adquiridos?
Usando dessas perguntas, eu posso dizer como a taverna é na seguinte ordem:
a) Chama-se “O Bafo Dracônico”;
b) É um draconato chamado Zuratrax;
c) Ele recebe ajuda de uma humana e um halfling, chamados Nínive e Aldren; d) Tamanho médio, havendo espaço para aproximadamente onze mesas;
e) A esta hora, vários clientes estão na taverna, ocupando seis mesas com alguns três ao balcão;
f) Algumas manchas de bebida no assoalho, migalhas de comida nas mesas ocupadas, mas nada que indique descaso com a higiene com as mesas que estão sobrando;
g) Um meio elfo bardo faz uma apresentação com seu alaúde bem ao centro da taverna. Nas paredes há algumas armas como machados e espadas e há também escudos de metal e madeira. Acima da prateleira das bebidas há uma espada que tem um formato de uma língua de réptil emanando um brilho vermelho e laranja ao lado de um elmo de escamas de dragão;
h) Os alimentos incluem guisados, pães, carne de coelho, porco e boi grelhadas e sopa de legumes com cenouras, batatas e coentro. As bebidas incluem cerveja escura e maltada, dentro de grandes barris de carvalho, que estão embaixo da prateleira de rum, cachaças e um líquido preto e prata brilhoso com o nome “sangue de drow”.
Viram? No momento da criação vocês irão travar um pouco e pensar bastante, mas isso não é problema nenhum, é algo inteiramente normal, inclusive. Depois disso, é bom manter anotado, para quando for a hora de narrar, não esquecer essa ambientação.
“É só isso? Mas isso aí tá muito fácil, professor. Bota uma coisa mais difícil”. Calma lá, que além disso vocês precisam emitir o tom da sua voz da maneira adequada. Está descrevendo essa taverna? Fale devagar, de forma descontraída e meio preguiçosa, emitindo um ar de tranquilidade pois os jogadores vão ao Bafo Dracônico para espairecer. Está narrando os esgotos da cidade ou subterrâneo? Narre de forma misteriosa e um pouco baixa, para os jogadores se aproximarem e ouvirem melhor sobre o que pode estar espreitando pelas sombras, deixando sua voz um pouco rouca na hora que um NPC aparecer repentinamente. Vai narrar aquele dragão ancião e soberbo ou um gigante de fogo sob um vulcão prestes a explodir? Endireite suas costas, fale alto em tom imponente e explosivo, emitindo onomatopeias de tremores e explosões estufando seu peito para trazer aos jogadores a sensação eufórica de ver seres mitológicos em ação!!
De tanto fazer isso, às vezes as características dos locais e pessoas vêm até suas mentes no momento que vocês falam, então vocês também irão improvisar de maneira magnífica e fluida, sem os jogadores conseguirem diferenciar o que é improviso ou preparação. Mas antes de mais nada, lembrem-se que o improviso é algo criado em cima de outra coisa previamente criada ou preparada, então não sejam imprudentes e prepotentes achando que conseguem fazer tudo de improviso. Preparem tudo antes da sessão e seus jogadores falarão “Parabéns, tá mestrando demais!! Eu me senti lá no ambiente!!
Então, meus ferreiros arcanos, o que vocês acharam dessas dicas? Já praticam essa narrativa detalhada? Como preparam? Que dicas adicionais vocês podem deixar nos comentários? E melhor ainda, o que seus jogadores já falaram de suas narrativas?
PS: Eu não tenho um bonito jardim que descrevi lá em cima. Hehe
PPS: Podem pegar a taverna de Zuratrax para vocês como cortesia. ^^