LAMINA-SERENA-A-MATADORA-DE-REIS_capa

Lâmina Serena: A matadora de reis

Capa: Tiago Baggio
Uma adaga mágica nas mãos de uma assassina. Nem os mais poderosos reis estão a salvo.

Um de cada lado do rei, os soldados permanecem em pé com as mãos abraçando a empunhadura das espadas e os olhos fixos na porta de entrada do pequeno quarto, enfiando em um canto da torre do castelo. O peso aconchegante das placas metálicas sobre os ombros os sustentava, impedindo-os de tremer, e o silêncio só era quebrado pelo tilintar, quando a respiração profunda e o ajustar da postura fazia as armaduras mexerem.

A confusão de gritos e sons de batalha havia passado e agora tudo estava parado, quieto demais. A cada ruído diferente do toque metálico das armaduras dos guardas reais, a cada ranger do lado de fora, os punhos se serravam contra o cabo da espada, num aperto contínuo de crescente intensidade, fazendo o couro estalar.

Um passo mais atrás, o rei apoia uma das mãos na armação de madeira trabalhada da cama. O quarto de teto baixo, com o chão e paredes forrados de tapeçaria barata, já recebera a visita de muitas concubinas mas, o que antes era um calor de paredes próximas feito para as fantasias do monarca, trazia apenas uma claustrofobia abafada agora.

O sufocamento era ampliado por aquele silencio que fazia os ouvidos zumbirem num tom agudo e constante. Até sua própria respiração ofegante parecia chamar atenção e ele contraía o abdômen na tentativa de deter aquele resfolegar chiado. Engoliu em seco fazendo barulho demais para seus ouvidos acostumados à cantorias dos bardos e aos gritos da multidão. Ouvia seu coração, que se cansava num galope acelerado que lembrava à mente os tambores da guerra e sentia o corpo sacudir a cada batida.

Lá fora, algo caia no chão. Um caixote talvez? Ou um corpo? Mais silêncio e espera. A porta simples, de madeira escura, parecia pequena mesmo naquele quarto apertado. Por isso, quando ela foi se abrindo devagar, a manopla, de brilho prateado da armadura que a segurava pelo lado de fora, parecia pertencer a um gigante.

A armadura completa colocou o pé para dentro sem fazer um ruído sequer. O elmo fechado e com uma abertura horizontal para os olhos, quase tocava o teto. Veio andando a passos bêbados, e a meio caminho da cama puderam ouvir um gorgolejar e a junção do elmo com o peitoral da armadura lustrosa derramou, tingindo de vermelho o colosso que vigiava a porta. Veio ao chão num só movimento, causando um ruído estrondoso. Como se o conjunto completo de talheres do jantar, posto ainda quente dois andares abaixo, fosse atirado ao chão de uma só vez.

A sentinela que recebeu, quase a seus pés, o corpo do colega de serviço foi atingida no pescoço pela adaga atirada. Sentou-se, devagar e tremendo, aos pés da cama, onde morreu sem emitir um som, admirando a prata refletora do espelho colocado no teto, sobre a cama.

Os dois pares de olhos que ainda viviam foram rebatidos para a porta, onde uma mulher de pele alva com lábios finos e arroxeados sorria enquanto entrava no recinto. Estava coberta por um manto escuro, mas o capuz foi jogado para traz e, com uma piscadela marota, ela fez um gesto com o indicador, chamando o último guarda. Ao perceber que tinha a atenção total do último vigilante, ela foi saindo, dando passos para trás num caminhar lento sem desfazer o contato visual com sua próxima vítima.

Um arrepio gelado subiu pela coluna do rei até a nunca, fazendo o couro cabeludo sentir o toque da fina e diminuta coroa sobre sua cabeça. Seu último soldado ofegou uma nevoa da própria boca e puxou a espada da bainha do soldado sentado, entregando-a ao rei. Depois sacou sua própria espada enquanto seus lábios se mexiam, mas o rei só tinha olhos para a arma de lâmina polida. Só prestou atenção ao que o outro dizia quando sua mão pesada, e calejada das inúmeras batalhas, caiu-lhe sobre o ombro. Ele falava mas nenhum som saía. O próprio guarda deteve-se franzindo a testa e então falou de forma pausada abrindo bem a boca e pronunciando bem o silêncio.

– Eu vou atrás dela, fique aqui.

E virou-se para a única porta, decidido. Condenado.

O rei protestou, gritou ordens e depois esbravejou ameaças mas, não só não conseguia ouvir suas próprias palavras, como tampouco escutava os passos duros de seu soldado no chão, ou o tilintar da armadura que protegia seu derradeiro guarda, que simplesmente continuou se movendo.

Depois que ele saiu, e fechou a porta, o rei notou que não ouvia mais a própria respiração, que agora puxava e expulsava o ar dos pulmões com o desespero de quem quase se afogava fazendo pequenas nuvens de vapor no ar gelado. O silêncio era diferente pois não zumbia mais os ouvidos, ele não escutava mais o próprio coração e, por um instante, pensou que já estava morto. Silêncio.

Ela entrou de novo pela porta, e novamente estava sozinha. Caminhou sem pressa em direção à sua adaga que repousava na garganta já quase sem sangue do soldado real. Até ter recuperado sua ferramenta de ofício, ela ignorou por completo o homem que tremia e lhe apontava uma espada por sobre um canto da cama.

Já com a lâmina em mãos, a assassina, com suas íris azul-gelo, olhou nos olhos do rei e caminhou para ele, tirando a capa que a cobria. O monarca ainda fez menção de golpeá-la mas a mulher enterrou a adaga no braço armado, que amoleceu.

O rei nem tentou gritar, apenas chorou lembrando de suas meretrizes e das noites de calor naquele quarto. Mas não sentia nem mais o abafamento sufocante de antes, apenas o frio que vinha de fora e de dentro.

“Viu? Eu disse que o sangue ia espirrar, os reis sempre fazem um drama na hora de morrer. Já não aguentava mais ter que lavar aquela capa”, pensou e um sussurro respondeu: É verdade, e esse é um manto de bom tecido, seria um desperdício estragá-lo com manchas de sangue.

A menos de um dia de cavalgada dali, havia outro reino, outro castelo e ela entrava novamente, mas dessa vez pela porta da frente e sem ter que matar ninguém. A sala do trono era iluminada por um sem número de tochas cujas chamas tremulavam à passagem da figura encapuzada.

– Onde está meu ouro? – perguntou a mulher.

– Onde está a prova? – respondeu o homem sentado que tinha sobre a cabeça uma peça de ouro cravejada de pedras vermelhas e azuis

Ela atirou no chão ao seus pés a pequena coroa, que tilintou e rolou até cair e gradativamente perder a energia de sua oscilação, pousando em pé diante do outro rei.

– E o que lhe garante que eu vou pagá-la?

– Seus filhos, que gostam de brincar no sol do campos de trigo, seu primogênito, que sai a cavalo para caçar e as vezes dorme com as putas fora do castelo e a sua guarda real destreinada, que permitiu que um amador daqueles viesse aqui e lhe roubasse.

O monarca se ajeitou em seu trono e com um gesto fez um homem bem vestido entregar à mulher uma bolsa de couro. Recebido o pagamento, ela virou de costas para a corte cheia e saiu caminhando, com a mesma calma da noite anterior, no esconderijo do rei morto.

Mais um dia de cavalgada e outro a pé, pela floresta, e voltava a seu esconderijo na lendária caverna das ruínas de mármore branco, tomadas pela vegetação. Ela não se lembrava mais de ter encontrado ali um corpo que parecia mumificado. Seco e magro, o morto tinha ainda a pele sobre os ossos e nada mais. Mas isso tinha sido a muito tempo, no dia em que ela havia encontrado a adaga mágica.

De lá pra cá já tinha matado sete reis e, sentada num trono escavado na pedra nua do fundo da caverna, relaxava com a sensação de dever cumprido. Uma pilha de moedas e outras peças de ouro, prata e pedras preciosas, brilhava sob a chama de algumas velas. E o sussurro lhe massageava a audição.

Serena e suprema, escapaste intacta.

O sibilar dos ‘esses’ e os estalidos dos ‘pês’ e dos ‘tês’ ao pé do ouvido causavam arrepios de excitação na jovem, que já quase deitava no trono de pedra. Ela brincava de acariciar seu braço com a ponta da lâmina fazendo cócegas pelo o antebraço até o pulso.

Cumpriste tua missão, agora podes descansar. Eu cuidarei de ti pequena, não te preocupes.

– Já é a hora?

Sim, respondeu o sussurro da mente, o sol já se foi, mas faça com cuidado, só a ponta, devagar.

A afiada terminação da arma veio entrando quase paralela a braço da jovem que, depois de alguns poucos centímetros, parou de enfiar em si mesma a adaga. Um pouco de sangue escorreu pelo braço, mas logo foi puxado de volta pela lâmina sedenta.

Depois de três dias a caverna parecia ter feito uma viagem no tempo, cavada nas ruínas de uma antiga civilização estava lá igual antes: um belo tesouro e um corpo seco com a lâmina presa ao braço esquerdo. No fim da tarde os grilos e sapos regiam sua cantoria mas, caído o sol, a caverna repousava fria, silenciosa e serena.

E numa taverna ali perto uma mulher, vindo de terras distantes, sonhava com o vento que sussurrava através de uma cidade de mármore branco.

Sete sacerdotes, sete reis…

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