Chega o momento em que seu grupo desconfia que aquele nobre bonachão, aquele guarda da cidade, ou ainda aquele político em campanha – este com quase toda certeza – estão escondendo algo (Sim, amigos, os famigerados 171 estão em todos os lugares, incluindo na sua aventura), é então que os jogadores, para variar, decidem descobrir do que se trata recorrendo às habilidades de diálogo e observação de seus personagens, ao invés de simplesmente arrancar toda a verdade no cacete.
Como realizar os testes, interpretar, descrever, para melhor resolver essas interações? Como se preocupar com a atual situação sociopolítica de nossa nação quando questões como essa permanecem necessitando de teorização? Pensando nisso, aqui vão algumas reflexões que estivemos fazendo sobre o assunto e que, quem sabe, talvez sirvam para orientá-los e aperfeiçoar suas mesas.
AFIANDO O OLHAR
Diferentes sistemas nomeiam à sua maneira a habilidade de detectar intenções escusas, informações falsas ou omissas; mas seja Intuição, Sentir Motivação, ou mesmo Psicologia, se o personagem não tem uma bola de cristal ou algum meio de entrar na mente do npc (ou seja controlado por uma jogadora mulher, o que é equivalente), ele deve se guiar pelo comportamento de seu interlocutor. A bem da verdade, eu diria, essas perícias referem-se exatamente a isso.
Considere o seguinte: mentir, ou esconder algo, não é tarefa fácil. É estressante e, por mais habilidosa e atenta que seja a pessoa, deixa rastros, nem que sejam mínimos. Manifesta-se na linguagem corporal, em comportamentos que fogem à percepção, inconscientes.
Este é um tema relativamente pop. Talvez você já tenha topado com o livro O corpo fala, de Pierre Weil e Roland Tompakow, ou com a série Lie to me. Embora esses e outros exemplos populares variem em acuidade científica, diferentes áreas do saber, em especial a Psicologia, referem-se à importância do comportamento não-verbal na comunicação cotidiana entre as pessoas e na apreensão do sujeito.
Mas calma, você não precisa se tornar um estudioso da área. Lembrem-se, estamos falando de RPG, diversão e entretenimento, então ao menos neste contexto uma licença poética é perdoável. Além das obras citadas uma breve pesquisa no Google ou YouTube, ou em uma ou outra revista de curiosidades, podem lhe fornecer ideias. A seguir, adianto-lhes algumas:
- Franzir momentaneamente o nariz ou comprimir os lábios quando algo lhe desagrada;
- Cruzar os braços ou “se abraçar”, como um gesto para acalmar a si mesmo;
- Esfregar as mãos sobre as pernas quando se está nervoso;
- Surgimento de rugas momentâneas na testa;
- Inquietação geral. A pessoa troca constantemente seu peso de uma perna para outra, por exemplo;
- Afrouxar a gola da camisa, ou outro “comportamento de ventilação”;
- Afirmar algo, enquanto nega com a cabeça.
Embora na realidade esses e outros sinais por si só não atestem uma mentira – é necessário, claro, levar em conta o contexto e a pessoa que fala -, em situação de jogo podem servir muito bem a você para dar pistas aos seus jogadores de que algo lhes está sendo escondido.
SUSPEIÇÃO NA SUA MESA
E como manejar a sessão quando os personagens suspeitam, ou deveriam suspeitar, de um npc? É claro que, como mestre, você pode recorrer ao simples rolar de dados, mas ao fazer isso você perde uma ótima oportunidade de temperar seu jogo e desafiar seus jogadores. Eu iria ainda além e diria que, dependendo do caso, “encontros sociais” podem prescindir de qualquer teste.
Este meu posicionamento parte de uma conduta pessoal. Com meus jogadores, sempre que eles se propõem a convencer, enganar, seduzir e, incluso, sondar um npc, peço que eles interpretem. Se eles se esforçarem, utilizarem os argumentos certos, tiverem boas ideias, eu esqueço os dados e os recompenso com o sucesso. Essa não é apenas uma forma de gratificar seu jogador, é uma forma de incentivá-lo a desenvolver sua criatividade, engajar-se no jogo e motivar-se a interpretar (o nome do jogo não é Role-Playing Game à toa, ora); por outro lado, se você exige unicamente o teste de habilidade, seus jogadores se tornarão preguiçosos. Irão simplesmente rolar os dados e esperar que você dê todas as informações de bandeja. No final das contas isso deixa de ser rpg e vira uma mesa de casino.
Neste ponto você pode estar se perguntando para quê, então, serviriam as habilidades sociais do sistema e por qual motivo um jogador escolheria investir nessas habilidades em suas fichas. Quer dizer que devemos ignorá-las? Bem, você pode fazer isso ou não. Em último caso decisões desse tipo cabem ao mestre em conjunto com os jogadores, mas não é isso que estou sugerindo. Uma opção mais equilibrada é integrar ambos interpretação, descrição e jogada de dados, como sugerido pelo camarada Dimitri em artigo anterior.
Uma variedade de abordagens pode ser utilizada, e é aqui que aplicamos os exemplos de comportamentos suspeitos citados na seção anterior deste artigo. A título de exemplificação, contemplemos um cenário em que os jogadores estão investigando um assassinato ocorrido num castelo e interrogam um criado se ele presenciou o ocorrido. O criado viu, mas disse que não. Eis algumas formas de conduzir a interação:
1 – Um sucesso no teste pode ser condição para que o personagem consiga observar algo, mesmo que as conclusões a partir disso caibam unicamente a ele:
O jogador 1 fracassa no teste e o comportamento do criado parece usual para ele. O jogador 2, entretanto, é bem-sucedido e percebe que o criado enrijece a mandíbula sempre que lhe é feita uma pergunta, pigarreia de leve logo antes de responder, e retorce os dedos da mão esquerda enquanto fala.
2 – Você pode permitir que o jogador faça o teste após uma interação bem interpretada – ou antes da interpretação, para decidir se durante ela revela algumas informações sobre o comportamento do criado;
Os jogadores executaram uma ótima interpretação, escolhendo bem suas palavras e aplicando cuidadosamente pressão psicológica, assim eles desestabilizaram o criado. Você pede que os jogadores façam um teste para saber se eles foram capazes de notar os indícios em seu comportamento.
Você pode usar a pontuação da perícia dos personagens como parâmetro para revelar informações sobre o npc;
O jogador 1 tem uma pontuação baixa na perícia, mas o jogador 2 investiu bastante nela o que significa que ele possui uma natureza mais atenta e um olhar mais treinado que seu colega, lhe permitindo perceber indícios de que o criado esconde algo.
Em alguns destes casos a informação pode estar disponível a um personagem e não a outro, você pode compartilhá-la em segredo com o jogador em questão, ou abertamente, requerendo daqueles que não foram bem-sucedidos esforço de abstração para interpretar a ignorância de seus personagens.
Complementando ainda, cito um caso pessoal. Mestrava eu uma aventura publicada quando meus jogadores precisaram investigar o paradeiro de um dragão que havia atacado recentemente uma aldeia. Naturalmente eles foram ao chefe do local, este que possuía informações importantíssimas para a missão em questão dos personagens, mas que por motivos pessoais as mantinha em segredo.
Os indícios os plantei logo que os personagens adentraram na casa do dito cujo. O homem parecia abatido e ter recentemente chorado – ombros caídos, olheiras e olhos vermelhos – negava a informação de que o dragão estivera acompanhado de um homem durante o ataque, contradizendo várias pessoas da aldeia; não pareceu particularmente preocupado com a possibilidade de um novo ataque, e quando pressionado por mais informações, irritou-se. Ademais, durante toda a conversa, o corvo que o sujeito mantinha em uma gaiola estivera extremamente agitado, grasnando e fazendo alvoroço.
Isso naturalmente despertou as suspeitas dos personagens. Utilizando magia para falar com o corvo um deles descobriu que o homem estava preso em um acordo forçado com o dragão e seu “cavaleiro”. Munidos dessa informação, os personagens foram capazes de apelar à dor do personagem, que havia perdido a esposa e temia pelo seu povo, e fizeram-no confessar tudo.
Seja como for, o que estou atentando aqui é que, de uma ou de outra forma, contanto que se desafie os jogadores a pensar e agir para sondar um npc e conseguir uma informação, tais interações na sua mesa serão mais interessantes, emocionantes e divertidas.
FALSIDADE IDEOLÓGICA
Uma nova e interessante gama de possibilidades entra em cena se o que a outra pessoa está escondendo é sua verdadeira identidade. A postura, o andar e as vestimentas podem ser indicativos, assim como diferenças comportamentais com raízes culturais. Joe Navarro, ex-agente do FBI, autor de várias obras sobre comportamento não verbal, conta um caso em que um espião foi descoberto apenas porque foi visto segurando um buquê com as flores para baixo. Acontece que essa é forma com que europeus orientais seguram buquês, ao contrário dos americanos, que mantém as flores para cima. Ou então lembremos da célebre cena de Bastardos Inglórios (Não vou nem perguntar se você já assistiu…) em que o Tenente Archie Hicox (Michael Fassbender), inglês disfarçado como oficial alemão, acaba por denunciar-se simplesmente porque pede 3 copos de bebida, fazendo com os dedos um sinal diferente do que fazem os alemães.
Diferenças sociais também são uma origem de indicativos. Um nobre que tenha fugido recentemente e esteja se disfarçando como camponês é um exemplo fértil. Observando-o por um tempo um personagem pode notar que as unhas e cabelos dele são melhores cuidados. É um tanto mais asseado, tem uma postura mais rija, talvez; uma fala mais rebuscada, uma mão desprovida dos calos comuns resultantes do trabalho braçal, e uma inabilidade e indisponibilidade geral para vida no campo e trabalho doméstico.
Se o falsário tenta se passar por alguém conhecido de um ou outro personagem, tanto melhor. Você pode se valer das idiossincrasias dessa pessoa e de informações compartilhadas entre ambos. Descreva um tique que ela não tinha – ou a ausência de um tique que ela possuía -, por exemplo. Uma piada interna não compreendida, ou um meio segundo de hesitação ao responder a uma pergunta podem chamar a atenção do observador mais atento
Nesse sentido há também um exemplo. Este mais recente. É a forma como Nick Fury descobre o disfarce de Talos em Capitã Marvel. Uma palavra é tudo o que Fury precisa para desconfiar, e em seguida pegá-lo em uma armadilha. Jogando verde e colhendo maduro, como se diz. Não me aprofundarei para não incorrer em spoilers, por via das dúvidas, mas os que assistiram, sabem do que falo.
Enfim, seja utilizando ou não dados, sempre que uma situação parecida com as descritas surgir em sua mesa, descreva os detalhes da interação, adicione incertezas, desafie seus jogadores e assim crie tensão, com o tempo você perceberá uma evolução nos próprios jogadores. Estes ficarão mais engajados e atentos ao jogo, e começarão a desenvolver sua própria percepção, extrapolando os simples cômputos das fichas e potencialmente dando origem a momentos marcantes e divertidos.
Espero que tenhamos contribuído para sua diversão. Bons jogos e cuidado com os 171 por aí…