Acompanhe esse grupo improvável tentando fugir da mais terrível das masmorras, nesse conto em 2 partes.
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Saída de Mestre
parte 1
Pela primeira vez eu senti que não ia ter jeito, era o fim.
Já tinha me enfiado em várias enrascadas, não me entenda mal. Mas eu sempre tinha pelo menos um vislumbre de alguma chance de escapar. Mas ali, naquele lugar de escuridão tremeluzente, mal iluminado pelas poucas tochas, eu já tinha ficado sem ideias. E não estávamos nem perto de achar uma saída. Eu sentia o peso da derrota sobre mim. Mas não estava triste por minha causa. Era mais por causa de minha companheira de aventuras. Ela era muito jovem para morrer.
Alana com uma espada curta na mão era um terror. E se estivesse empunhando duas ao mesmo tempo, era sozinha um batalhão. Ela era o guerreiro mais impressionante que eu já tinha visto. Não pelas proezas em si, eu já tinha participado de uma ou outra batalha épica, mas pela idade. Imaginava o quão cedo ela devia ter começado pra alcançar tal nível de maestria com apenas 17 anos.
Detectar magia. Alguns dias antes, se me perguntassem, eu ia falar que era o feitiço mais subestimado de todo o grimório. Um truque simples que qualquer iniciante pode fazer, mas que, nas mão de alguém experiente, é uma ferramenta reveladora. Por vezes consegui manter o grupo no rastro certo apenas seguindo um sutil traço de magia. Mas ali tudo era mágico. Cada maldita pedra retangular fria e cinzenta, que construía o interior daquele lugar, cada tocha, cada pequeno morcego, cada inimigo, tudo tinha uma aura encantada.
Meu próximo passo foi tentar identificar que magia poderosa era aquela, cuja aura fluía por toda a construção. Uma pena de coruja bem limpa colocada dentro de um pequeno cálice de vinho e, para finalizar, o pó de uma pérola. Alguns preparativos a mais, que aprendi com um dos maiores magos ainda vivos, e aquele efeito iria durar por algumas horas. Depois de beber bastaram os gestos e as palavras místicas.
Sim eu fui direto para as paredes do lugar, que emanavam a aura mágica mais poderosa. Claro que aquilo foi um erro, mas era a nossa melhor chance. Toquei a pedra mais próxima e comecei a perscrutar seus segredos arcanos.
Eu estava numa nuvem colorida e brilhante. Tons de azul celeste e violeta cintilavam oscilando para notas mais escuras: azul marinho e roxo. Era como o dia e a noite. Eu senti uma satisfação, um sentimento de realização. E então percebi que eu não estava respirando, senti novamente o tato áspero do muro na minha mão. Eu sabia que tinha que interromper o toque para voltar a respirar. Mas era tão bom, tão confortável estar ali. Estivesse eu sozinho, muito provavelmente aquele teria sido o meu fim. E até hoje acho que não seria uma morte ruim. Confortado em êxtase. Seria uma boa forma de partir.
Mas eu não estava sozinho, eles precisavam de mim. A jovem Alana dependia de mim, então me separei daquele abraço.
– Com mil demônios que porcaria de magia foi essa! Achei que ia ter que quebrar essa parede pra te arrancar lá de dentro!
Eu sou velho, não muito, mas o suficiente para ainda estar recuperando o fôlego. Minha companheira jovem e atlética, diante do meu silêncio, prosseguiu:
– E aí? Conseguiu pelo menos saber alguma coisa.
– Não. Quem quer que tenha feito esse lugar colocou uma armadilha caso alguém tentasse identificar os feitiços daqui.
Era óbvio, como eu tinha sido tão burro? Não é que tinha uma armadilha em cada corredor, cada porta ou cada parede. É que aquele lugar inteiro ERA uma armadilha. Só não comecei a achar que a aura mágica das paredes só existia por causa dessa armadilha pelo fato de conseguir perceber mais de duas auras emanado daquele lugar.
– Vamos seguir.
Não me julgue! O que mais eu poderia dizer naquela hora? O ladino que contratamos estava trêmulo. Cada mecanismo que ela desarmava vinha com um truque a mais, preparado para quebrar uns dedos. Na última porta trancada tínhamos passado mais de uma hora só para ele perceber que, daquela vez, não havia armadilha nenhuma. Era só uma porta trancada.
Não o culpo, já tinha passado por muita coisa. Dois dedos quebrados e uma algema-mandíbula, que eu tive que enviar para outro plano se não ele perdia a mão.
Aquele lugar faz isso com seus visitantes. Estávamos paranoicos. Cada som, cada movimento diferente era motivo para um sobressalto. Não sei quanto tempo havia passado mas finalmente tínhamos vasculhando todo aquele lugar. Um porão maldito, uma masmorra construída sabe-se lá com que objetivo. Uma prisão sem saída.
– Como diabos foi que a gente entrou aqui e agora não tem nenhuma saída? A gente abriu todas as portas, vasculhou todas as salas e todo os corredores para chegar no último corredor e dar de cara com uma parede? E agora?
Alana falava alto e de forma agressiva, mas eu a conhecia a pelo menos dois invernos, conseguia perceber os pequenos dissonantes em sua voz. Ela também estava com medo.
– Ainda não procuramos por portas secretas aqui. Deve ter alguma em algum lugar.
Quando terminei de falar institivamente olhamos os dois para o ladino. O pobrezinho estava trêmulo. Eu fui irresponsável. Não devia ter aceitado contratar alguém tão jovem. Não para aquela missão. Não para tentar entra logo ali. Eu tinha condenado o pequeno halfling.
– Deixem comigo. – falei confiante.
Ah claro, que paspalho. O que poderia dar errado?
Detectar portas secretas, outra magia simples. Mais gestos e algumas palavras. Pronto. Me concentrei o melhor que pude, controlando a respiração e segurando minha própria cabeça. Varri com os olhos cada centímetro da parede final, nada. Depois as paredes laterais, nada. Finalmente olhei para cima, mas também não havia nada ali. Só me restou o chão.
Um calor me subiu às faces. Senti meus olhos arregalando. Uma saída finalmente! Mais alguns minutos examinado e logo eu sabia como abrir aquele alçapão escondido. Passado o efeito da magia olhei para meus companheiros. Eles me observavam atentamente lendo minhas expressões. Eles já sabiam. Alana me cumprimentou. Bem… do jeito dela.
– Ah, seu velho pervertido safado! Sabia que tu não ia me deixar na mão!
– Aqui! Tem uma passagem para baixo bem aqui. Me ajudem a empurrar essa pedra.
Um mecanismo engenhoso misturava mecânica refinada e feitiços elevados. Um pedaço do chão se ergueu. Era como uma porta toda de pedra, só que abria do chão para cima. A sala abaixo de nós era bem ampla. Pelo menos se comparada ao estreito corredor onde estávamos. Além disso, tinha muito mais tochas e as paredes estavam todas cobertas com um tecido luxuoso. Um trançado de altíssima qualidade desenhava uma paisagem de colinas verdes nas paredes e pelo chão.
Sim, claro que era uma armadilha. Nós sabíamos, mas era o único caminho a seguir. Descemos e, lógico, a porcaria da porta escondida bateu nos fechando ali dentro. Alana já tinha as duas espadas em punho e eu estava com meu cajado em chamas. Mas nada aconteceu. Era um salão simples e só. Sem portas nem nada.
– Oras, mas que d…
Uma voz interrompeu Alana. Uma voz que carregava nos esses sibilantes e quase gemia a cada eme. Teatral e melodramática, arrastada, mas ainda assim ameaçadora.
– Saudações meus caros visitantes. E meus parabéns por chegarem até aqui. Agora eu tenho um enigma para vocês.
A voz, que eu não conseguia dizer se era de homem ou mulher, continuou.
“A vida em mim se origina
Da Terra sou o coração
Mãe, mas também de rapina
Posso tirar sua respiração
Invisível? Não! Cristalina”
– A essa é muito fácil. A água!
O halfling era uma mente muito ligeira. Muito perspicaz e inteligente. Mas era afoito demais. Era muito jovem. Eu fui um monstro de trazê-lo naquela missão. Mal ele terminou de falar, eu percebi. Não conseguia ver nenhuma aura mágica naquele lugar. Mas aquela voz não era natural. A magia da masmorra continuava ali, era a minha que tinha sumido. Um campo de anti-magia! Me detive em falar. Primeiro por que só geraria mais pânico. Segundo por que a voz prosseguiu.
– Parabéns, mas essa não é a charada. Foi apenas um poeminha que eu fiz. O verdadeiro enigma é: como vocês vão sair daí antes de se afogar.
Uns dez ou vinte furos no teto começaram a verter fartos. Todos ficavam nas laterais, era quase possível ver o formato do corredor acima de nós. Era a única região do teto de onde não caía água. O pequenino foi o primeiro a se desesperar, já que para ele aquilo ia ficar fundo muito mais rápido. Foi correndo para uma das paredes e começou a rasgar a bela tapeçaria.
– Estamos em um campo de anti-magia. Eu sou um inútil aqui.
Eu olhava nos olhos dela.
– Então cala a boca e começa a rasgar essas paredes, por que é o melhor plano que nós temos.
Rasgamos com facilidade. Logo, grandes trechos estavam expostos. As paredes e o chão daquele lugar estavam revestidos com uma espécie de melaço, um piche preto e grudento. Fosse em outro lugar diria que foi uma forma porca e descuidada de colocar a tapeçaria. Mas não ali. Ali tudo era maliciosamente proposital. Logo a água ocupou todo o chão da sala e vimos que aquela substância era impermeável.
A impetuosidade do halfling lhe custou caro mais uma vez. Gritando ele começou a meter as mãos e arrancar aquela gosma e logo deu um gritinho mais agudo. Dor, e uma pequena perfuração. Alana iria começar a fazer o mesmo. Eu a atrapalhei e conseguiu detê-la por tempo o suficiente. Nosso ladino virou de costas para a parede onde estava a trabalhar e olhou para nós.
Os olhos marejados, a boca formava uma letra ‘u’, as sobrancelhas caídas nas laterais lutavam para se unir no centro. Uma expressão quase cômica de pânico. Um líquido verde-água, meio azulado e quase transparente emergia da pequena perfuração. Nenhum de nós falou uma palavra sequer, mas todos pensávamos a mesma coisa: veneno.
Eu já estava a imaginar qual o tipo e qual seria o antídoto. Um veneno de vespa rubi, que desliga os músculos para que a vítima não conseguisse nadar?
A água começava a subir.
Talvez veneno de escorpião-fada que retira a força quase por completo? Assim poderia impedir que, mesmo o mais forte dos ogros, pudesse abrir uma passagem para escoar a água, mas ainda assim conseguira nadar e boiar para poder ficar em desespero por mais tempo. Eu já estava começando a pensar como o cruel idealizador daquele calabouço.
Ou pelo menos eu achava. Nada, nem mesmo meu devaneio de vilão, iria me preparar para o que aconteceu. Diante de nossos olhos três pequenos cortes apareceram de cada lado do pescoço dele. E, em mais alguns minutos, estavam completamente formadas aquelas guelras. O pequenino inspirou sufocado, emitindo um ruído de estrangulamento, e logo, institivamente, enfiou a cabeça na água.
O nível do alagamento naquela hora já estava quase no nosso o joelho. Mas ainda assim o ladino tinha que ficar deitado para poder respirar, pois tinha que manter, não só a cabeça, mas também o pescoço dentro da água. Agora, mesmo que encontrássemos uma forma de sair dali, o que iriamos fazer como nosso jovem companheiro?
– Bom pelo menos não vamos todos morrer afogados aqui. Ganbim vai ter a sorte de morrer de fome.
Alana tinha um timing terrível para piadas, e um humor mais negro que aquele maldito piche.