Vamos tratar nesse subindo o nível cultural sobre uma das expressões máximas da cultura, a Religião. Por vezes é difícil de entender a religião como uma expressão cultural, mas não vamos criar polêmica, pois vou tratar da religião em um mundo medieval.
Qualquer coisa que estiver escrita nessa cor diferente é por que se trata de um breve resumo do que já foi dito no subindo o nível cultural anterior e se você já o leu pode pular.
Cultura é todo um complexo que inclui o conhecimento, arte, crenças, leis, moral, costumes e todos os hábitos e aptidões adquiridos pelo ser humano.
Quando falo de Mundo Medieval, não estou tratando só do medieval no nosso mundo, pois não se trata de um simples apanhado histórico, estou mostrando como pode ser utilizado a cultura em um mundo medieval de RPG, como o mundo de Tormenta, Dragon Age, etc…
Aproveitando o gancho do Subindo o Nível Cultural Anterior de onde eu tratei sobre esportes e eventos esportivos e disse que por muitas vezes estes estão ligadas a religião. Como já falei anteriormente a Religião pode ser considerada uma das maiores expressões culturais, pois a religião cria doutrinas e comportamentos, influencia na criação de todo tipo de evento cultural, sendo ele esportivo ou não, em um mundo medieval pode ser que influencie na criação de Leis, pode ser que em determinadas cidadelas e vilarejos o poder maior venha do templo e não do palácio.
Mas como criar religiões para a mesa de RPG? Apesar de Religião ser ligada a cultura e vice versa, para melhor entendimento vamos dividi-las. Nas relações culturais os objetos podem ser vistos e conhecidos na sua totalidade, mesmo que existam aspectos subjetivos envolvidos… É o que? Entendi porra nenhuma! Veja o exemplo de uma criança que cultiva um relacionamento com outra criança, a relação das duas vai se dá nas experiências do dia a dia com a presença física durante as brincadeiras, e com a expectativa do dia seguinte que lhes dará a oportunidade de novas aventuras… Mas, essa mesma criança, possui um relacionamento com um Deus, através de uma Religião, essa criança nunca viu Deus, nunca falou com ele, nem tem perspectiva de ter tais contatos em um futuro próximo, pois o fundamento para esse relacionamento é a fé que se manifesta na crença.
Pois Religião vem de religare que significa religação com Deus. Se o pensamento não envolve religação com uma força suprema não pode ser chamado de religião, é apenas uma doutrina ou filosofia.
Entretanto, o ser humano também aprende a crer em meio ao seu contexto cultural. Um exemplo interessante é o exemplo do povo Assírio, cujo qual adorava uma divindade que mostrava claramente a identidade de seu povo. Como afirma Mckenzie (1971, p. 68): “Povo e Deus combinavam perfeitamente, pois prestando culto a Assur, os assírios estavam cultuando a si mesmos, como povo conquistador. De fato, nenhum outro povo podia adorar a Assur”. Aqui é possível perceber a relação entra a cultura de um povo e a maneira com que este povo se relaciona com o sagrado, e no caso dos assírios, é evidente que sua fé sacralizava seu modo de ser no mundo.
“Cada uma das grandes religiões surgiu dentro de um determinado contexto socio-histórico-cultural” (SANCHES, 2004). Sendo assim, a importância de reconhecer que é a partir da cultura que se formam os conceitos religiosos é fundamental para que se reconheçam os efeitos dessa relação na maneira de um povo que comunga da mesma fé para enfrentar os desafios de seu contexto.
Ou seja, você antes de criar o Deus de um povo, deve criar primeiramente o povo. Imagine o seguinte você coloca que o Deus adorado na cidade é um deus festeiro, como Baco da mitologia Romana, ou Dionísio da grega e depois coloca uma cidade austera e bélica. Não faz o menor sentido, mesmo que haja liberdade de culto, não faz sentido um templo gigantesco para um deus que a maioria das pessoas não segue.
Em certos RPGs como Dragon Age e Tormenta a Religião é bem definida com todos os seus Deuses, clérigos e Sumo Sacerdotes, todos com suas regras e poderes pré-definidos. Mas não seria estranho se os aventureiros toparem com uma vila que nunca ouviu falar de nenhum dos famosos deuses do Panteão, muito menos do Reinado que comanda o território o qual eles estão inseridos. Ao invés de pagarem impostos eles pagam apenas dízimo o líder religioso local é a autoridade máxima do lugar.
Vou dar alguns exemplos de como aproveitar essa situação.
Ex1: O bom e velho Dragão… pode ser que o Deus cultuado pelo povo nada mais seja do que um poderoso Dragão que viva nas redondezas, ou o próprio sacerdote é o Dragão. Pode ser que ele apenas queira proteger a cidade e não goste de forasteiros, ou que queira um dos aventureiros como Esposo/Noiva ou queira o tesouro que eles acabaram de ganhar da ultima missão.
Pode ser que a cidade viva em paz e seja receptiva e pacata e que convide os aventureiros para ver o “dia do casamento” onde eles fazem uma festa e depois mandam um número X de garotas para dentro de uma caverna na floresta. Caso os players tentem se meter vão enfrentar uma cidade furiosa antes de enfrentar o Dragão.
As pessoas não necessariamente vivem com medo do Deus, elas podem verdadeiramente adorá-lo.
Ex2: A cidade pacata que adora um Deus Maligno. Os aventureiros chegam numa cidade onde eles são extremamente bem tratados e recebidos, mas no meio da madrugada quando eles estiverem dormindo serão utilizados como sacrifício.
Ou pode ser que eles acordem com gritos de crianças, quando eles chegam a praça principal veem crianças amarradas perto do fogo e sofrendo com o calor, como se estivessem sendo assadas. As pessoas do vilarejo estão ao redor festejando, ignorando completamente os gritos dos infantes. Podem pedir desculpa aos jogadores por não os terem convidado para a festa anual em homenagem ao seu Deus, pois sabem que forasteiros dormem muito pela noite. Podem pedir desculpas por terem sido acordados tão cedo e pelo barulho “desnecessário” da meninada. Se eles decidirem interromper pode ser que acordem um furioso Deus Louco/Malígno.
Ex3: O loop. Eles chegam a uma cidade que controla um Deus do Tempo. Toda vez que eles tentarem sair, vão voltar para a cidade e as pessoas vão achar que os viram pela primeira vez. As pessoas são pacatas, mas podem tratar eles como novos moradores, mesmo que eles insistam que vão ficar poucos dias, recebem risos e tapinha no ombro como resposta.
Para deixar a situação mais interessante, eles podem encontrar um herói que era uma lenda viva, que de um dia para o outro desapareceu sem deixar vestígios há milhares de anos atrás e esse antigo aventureiro pode ser um dos empecilhos para que os aventureiros saiam, nesses milhares de anos pode ser que ele tenha se convertido e virado um dos fanáticos do Deus do Tempo.
Só para esclarecer as coisas, cultistas dificilmente se apresentam como tal, se você é brasileiro e está lendo este artigo provavelmente você é cristão e mesmo não sofrendo preconceito por seguir essa Religião, dificilmente você se apresenta como tal. “Prazer, meu nome é Fulano(a) e eu sou cristão…”
Imagine se você seguisse uma religião que envolvesse sacrifícios humanos (se sua religião envolve sacrifícios humanos, você já sabe do que eu estou falando). Assim sendo o mestre pode dar dicas, como por exemplo gargantilhas e cordões com símbolos exóticos, talvez você já tenha visto quando salvou um pessoal de um mago que queria sacrificar uma pessoa em um ritual macabro, ou naquelas ruinas com altares estranhos.
Cidades Fantasmas e Deuses Loucos
Falando em Ruinas, podemos falar em deuses ancestrais, talvez mais antigos do que o panteão vigente, mais antigo do que ele mesmo se lembra, talvez ele tenha esquecido quem ele mesmo era, nunca mais ouviu o próprio nome. Agora não passa de uma massa de poder divino e insanidade. Eu me rendo, sou fã de Lovecraft…
Pensem nisso, várias dungeos não passam de cavernas, mas boa parte foi alguma coisa algum dia, pode ter sido um grande castelo que hoje não passa de ruínas e templos que não passam de um amontoado de escombros… Mas templos de que? Quem era o Deus cultuado naquele local? Há quanto tempo não existem mais pessoas ali? Eram mesmo pessoas que criaram aquele templo?
Nos quadrinhos de Conan ele demonstra que quando todas as pessoas que cultuam uma divindade morrem, o Deus deixa de existir… Mas e se ele não desaparece, se ele apenas hiberna por séculos e milênios e nunca mais é cultuado, nunca mais é chamado, dentro de um limbo negro onde nada e tudo existem e coexistem? Será que um Deus pode perder a sanidade?
Ele está triste, amargurado, irado e principalmente LOUCO… e agora ele acordou, ele sente os aventureiros andando em seu templo. No começo ele pode fazer pequenas coisas, mas em pouco tempo ele conseguirá se materializar.
Será que ele pode voltar a si com algum ritual, alguma informação escondida na Dungeon, ou simplesmente deve ser abatido e/ou adormecido por mais alguns milênios.
Religião e as Artes Marciais
Não tão comum no ocidente os orientais gostam de misturar técnicas físicas com mentais e espirituais. Seguindo o princípio de que “mente sã e corpo sã” lembrando que em muitas línguas antigas mente e alma são a mesma palavra, não havia diferenciação. Podemos também pegar do anime Soul Eater, “uma alma saudável, habita um corpo saudável e uma mente saudável”.
Rodrigo Apolloni (2004), cientista da religião que pesquisa as artes marciais chinesas, afirma que “as mais antigas representações marciais chinesas possuem três mil anos: aparecem em vasilhas de bronze datadas de cerca de 1000 a.C. […] e mostram homens em situação de combate” (2004, p. 24). Afirma ainda que registros de técnicas de guerra podem ser encontrados também na literatura chinesa antiga, nos chamados clássicos, e mais tarde, também na literatura wusia (capa e espada), como também mostra José Aguiar (2009), historiador e pesquisador das artes marciais.
No Japão, segundo o pesquisador do Instituto Nacional de Língua e Civilizações Orientais – INALCO Kacem Zoughari, “para se referir às técnicas de combate geralmente chamadas de artes marciais, os termos bujutsu, bugei e budo são cotados. Esses termos remetem à história dos ensinamentos da classe dos guerreiros japoneses” (2005, p.20).
Apolloni (2004) pontua que desde a dinastia Han posterior (25 a 220 d.C.) ocorreu uma propagação do taoísmo, e também do budismo, vindo da Índia. Houve, neste momento, hibridação de práticas corporais da Índia e da China, no caso, a Yoga indiana se mesclou com os exercícios taoístas de alquimia interior (do corpo), tendo também a influência das técnicas de meditação budistas.
Interessante perceber que “em termos marciais, o momento é significativo: ele teria gerado práticas corporais decorrentes da fusão entre preceitos budistas, hinduístas (através do Budismo) e taoístas. Essas práticas estariam na origem das artes marciais chinesas” (2004, p.26). Alguns desses exercícios chegaram até os nossos tempos, e se espalharam em todo o mundo, como é o caso do Chi Kung, que significa trabalho com a energia (vital).
Muitas vezes ficamos presos à concepção de que arte marcial se resume a defesa pessoal… Inicialmente arte marcial era como o nome já diz: Marcial, deriva do latim martiale, relativo a Marte, o Deus da Guerra. Assim sendo, uma Arte Marcial pode ser também compreendida como “técnica guerreira” ou “arte da guerra”.
Ou seja a Religião pode influenciar também na maneira que se guerreia de um povo. Como utilizar isso no RPG? Fácil… Lembra de Mad Max – Fury Road? Ótimo exemplo, eles tinham várias frases de batalha como por exemplo: “Testemunhem!”; “Eu sou um homem que pega o sol e dirige ele até os portões de Valhalla!”; “Eu vivo, eu morro e vivo de novo!”. Tudo não passa de um doutrinamento feito pelo Imorthan líder da Cidadela, onde ele mesmo se apresentava como deus vivo, tem momentos em que Nux diz que ele (imorthan) pilotou o sol.
Grupos de fanáticos dão grandes combatentes, mas podemos lembrar também dos mosteiros Shaolin. Um primeiro ponto a tratar sobre estes é que a marcialidade chinesa teve grande influência dos monges budistas guerreiros deste mosteiro, que criaram métodos de lutas com armas e com as mãos livres sendo transmitido oralmente num sistema mestre-discípulo, já indicando a existência de uma hierarquia marcial. A relação entre marcialidade e religião nesse ponto se dá por que os monges foram levados a adaptar sua prática religiosa às exigências da prática marcial.
Podemos colocar que mesmo um mosteiro dedicado a um deus pacífico pode conter fabulosos guerreiros. E pode ser dito sobre divindades que tem como a arte marcial seu verdadeiro poder, pois no nosso mundo monges de Shaolin buscavam justificar sua prática de bastão atribuindo-a a uma divindade budista chamada Jinnaluo (em sânscrito, Kimnara). De acordo com uma lenda originada no próprio mosteiro, Jinnaluo encarnou como um serviçal. Quando o mosteiro foi atacado por bandidos, ele empregou um bastão divino para repelir os agressores. Em agradecimento, os clérigos de Shaolin apontaram Jinnaluo como o Espírito Guardião (qielan shen) do mosteiro, e, a partir daí, passaram a praticar a divina arte do bastão. Então, os monges de Shaolin passaram a adorar uma divindade que era especializada em sua arma quintessencial.
Já imaginou um deus encarnado no meio de um templo com um bastão na mão e descendo o cassete em geral… simplesmente imperdível.
Então imaginem quando forem construir um local, qual deus é o adorado, ele pode se manifestar fisicamente? Ele vê os protagonistas com bons olhos? O deus desse local é uma figura conhecida do panteão ou tem o nome sussurrado pelos mais estranhos cultistas?
No mais, gostaria de seus comentários e sugestões, se quiserem solicitar algum aspecto cultural que eu deva abordar futuramente e ajudá-los a aprofundar suas jogatinas.