Este não é um review de IndyCar Series como outros da seção Time Devourer, mas está aqui pois simboliza o motivo pelo qual todos eles existem: é o legado que um jogo pode deixar e como ele pode influenciar a história de uma pessoa – para o bem ou para o mal.
O R2PG conseguiu uma entrevista exclusiva com Piers Eccleston, integrante da banda Ruocco, que gravou músicas para o jogo IndyCar Series (conhecido popularmente como IndyCar 2003), mas que nunca recebeu nada por isso. Agora, mais de 20 anos depois, uma pequena comunidade de fãs quer fazer o possível para mudar esse quadro.
Essa história é fruto do encontro de três trajetórias: um jogo, um artista e um fã. Para entendermos o que aconteceu, vou ter que contar a melhor por último.
O Jogo
IndyCar Series é um jogo desenvolvido pela Brain in a Jar, um estúdio inglês com vários jogos medianos no currículo, grande parte deles de corrida. A gigante Codemasters foi a publicadora e responsável pela licença com a Indy Racing League, a principal categoria de corrida de monopostos dos EUA. Apesar de ser feito na Inglaterra, o público-alvo eram os fãs da Indy na ex-colônia americana e por lá obteve resultados muito bons.
A Indy é uma categoria muito tradicional nascida em volta da corrida centenária das 500 Milhas de Indianápolis. Apesar do muito sucesso e picos de popularidade através das décadas, nunca houve uma franquia anual de jogos eletrônicos da categoria como se vê em inúmeras ligas esportivas. Isso faz com que IndyCar Series, apesar do nome genérico, ganhe notoriedade entre os fãs da Indy por sua qualidade e no êxito de criar um simulador divertido, um desafio que poucos conseguem superar.
A trilha sonora do jogo não é extensa, mas é cheia de personalidade. Conta com uma banda de peso como Queens of the Stone Age, compositores tradicionais no mercado como Steve Emney e… um tal de Ruocco, mas você só vai saber disso se ler a seção de créditos do manual do jogo. E foi o que eu fiz.
O Fã
Eu experimentei a versão de PC de IndyCar Series em 2017 e me apaixonei. Mas não porque eu acompanho a categoria desde que eu era criança nas tardes do SBT e passava as tardes de domingo da minha adolescência anotando mentalmente todos os comentários que o Felipe Giaffone dava nas transmissões da Band e compactos na Rede 21. Era porque era realmente um bom jogo.
Tão bom que fazia eu ficar horas treinando antes de cada corrida para fazer o melhor acerto do carro – pois foi o jogo mais didático e amigável nesse aspecto.
Tão bom que me fazia competir em corridas de 200 voltas, pois nenhuma era igual a outra, a ação é frenética e o spotter é tão competente que te deixa completamente imerso.
Tão bom que me fazia dirigir por dezenas de voltas em bandeira amarela, pois a todo instante você está gerenciando combustível e a tensão para a relargada é melhor que deixar no piloto automático.
E tudo isso regado a boas músicas. Tão boas que eu quis ouvir fora do jogo e tive a surpresa de não encontrar. Não havia uma playlist com a trilha sonora no youtube, nada para baixar no KHInsider (só apareceu lá em 2021) e praticamente nenhuma informação sobre quem as fez em nenhuma wiki.
Então fiz o que geralmente faço quando vejo um jogo sem tantos registros históricos – registrei eu mesmo. Na pasta de arquivos do jogo de PC é possível acessar todas as músicas em formato .wav, mais fácil impossível. O difícil era dar nome aos bois, pois os arquivos eram nomeados “1”, “2” e assim por diante – exceto por um que por algum motivo fugiu à regra chamado “kirdee”, que se tratava da música do menu principal.
A investigação começa
Indy Car Series não fornece ao jogador a informação do que ele está ouvindo em lugar nenhum. Nem em menus dentro ou fora da corrida, opção de trocar a música, nada. Isso não era incomum, talvez a EA tenha sido uma das únicas a mudar isso, mas não custaria nada.
Sem acesso ao manual de instruções, cujo PDF também parece não existir na internet, consegui informações de créditos em um único site, o Moby Games. Lá, a música do Queens of the Stone Age já foi confirmada e saiu da equação. As faixas instrumentais eram claramente as creditadas a Steve Emney – já conhecia o trabalho dele dos primeiros Burnout e realmente tinham a mesma pegada. Agora, havia duas músicas cantadas que só podiam ser dessa tal de Ruocco. A tal “kirdee” e mais uma faixa instrumental não estavam listadas nesses créditos.
As pesquisas sobre Ruocco até hoje geram resultados muito escassos, mas encontrei um álbum deles no Spotify chamado Too Hip for the Room datado de 2005 (essa data está errada e você vai entender mais pra frente) – tive que criar uma conta na época só pra ouvir – e consegui reconhecer uma música que estava no jogo: Open Heart Surgery. Uma da lista ficou de fora, a So That’s Your Man, que está nos créditos e no álbum, mas nunca a ouvi no jogo nem a encontrei na pasta de arquivos. A outra faixa é a Dreadful Blonde, que deu para determinar pelo título e a letra.
Com esse punhado de informações, fiz uma playlist no YouTube com a trilha sonora do jogo, sempre explicando na descrição que as informações sobre os nomes de algumas podem não estar corretas.
E foi isso, durante esses anos todos, ocasionalmente eu recebia um e-mail avisando que alguém havia comentado “nossa, que nostalgia” ou citando alguma frase do spotter durante o jogo. Sempre fiz questão de curtir esses esparsos comentários e responder. Era uma pequena comunidade que, assim como eu, foi cativada por esse jogo e a trilha sonora era nosso portal para reviver aquelas experiências.
Acontece o inesperado
Nunca tive a menor preocupação em fazer meu canal de YouTube crescer, é só um jeito de eu registrar minhas músicas próprias e dos jogos que não encontro em outro lugar. Por isso, nunca havia percebido que as respostas a outros comentários no seu vídeo não são notificados.
Na última semana de outubro de 2024, enquanto lia mais um novo comentário, percebi que alguns deles tinham mais de 10 respostas. Ao ler, vi que estavam falando sobre a letra de uma das músicas da Ruocco e um dos usuários comentou que havia escrito a música, mencionou o nome do cantor e postou a letra completa. Era Piers Eccleston. Esses comentários eram de 2020. Um integrante da banda que eu investigava havia 7 anos estava ali, nos comentários do meu próprio vídeo e eu nunca havia percebido!
Eu fiz a única coisa que pude: comentei a thread explicando que queria saber mais da história. Deixei meu instagram para ele entrar em contato, caso houvesse interesse.
Ele respondeu no youtube e chamou no instagram como se os 4 anos entre a última mensagem e a minha fossem 4 horas.
Com toda a solicitude, combinamos uma entrevista e segue agora a melhor parte da história:
O Artista – entrevista completa com Piers Eccleston
R2PG: Em primeiro lugar, quem é Piers Eccleston?
Piers Eccleston: Sou um letrista e escritor britânico apaixonado especialmente por música pop e indie rock. Nasci no interior da Inglaterra e me mudei para Londres após me formar. Tenho uma esposa e quatro filhos e atualmente moro em Cornwall, perto da praia.
R2PG: Como a banda Ruocco foi formada?
PE: Eu trabalhava em uma agência de publicidade em Londres no fim dos anos 90. A vida social era fantástica e a cena cultural em Londres bombava na época. Eu fiz alguns amigos que iam até meu flat com seus violões e a gente ficava tocando. Um deles, Jo Bohling, tinha voz incrível e logo ficou óbvio que ele deveria ser o cantor.
Eventualmente eu reuni coragem para mostrar minhas próprias músicas. Para minha alegria, eles adoraram o que eu estava escrevendo e paramos de tocar covers para desenvolver nosso material autoral. Ter outros músicos para adicionar suas próprias ideias foi uma experiência empolgante e recompensadora para mim e encontramos uma energia entre o grupo que só crescia.
A partir dessas reuniões iniciais, buscamos mais conhecidos para preencher as vagas para uma banda completa. Alugávamos um estúdio de ensaio toda semana, bebíamos muita cerveja e sentíamos a magia de dar vida a nossas próprias músicas. Tínhamos muito a aprender sobre controlar o som, deixar espaço para o vocal, estrutura musical e equilibrar o som com a bateria, mas estávamos adorando.
Estava tudo se encaixando e em seis meses fizemos nossa primeira apresentação. Na época, havia muitos lugares para se tocar em Londres e nos tornamos figura carimbada em muitos deles. Nossos amigos chamavam mais amigos até que ficou comum ter cerca de 100 pessoas aparecendo para nos ouvir.
R2PG: E como vocês acabaram gravando músicas para um jogo de videogame?
PE: Ensaiar e fazer shows é legal, mas a música só existia enquanto nós tocávamos. Ficamos desesperados para gravar nosso som. Tínhamos tantas ideias que eram dignas de entrar em um álbum, que nasceu o Too Hip for the Room. Era um projeto que nós bancávamos do bolso e do coração, mas ao mesmo tempo ainda criávamos e tocávamos coisas novas tão rápido que trocávamos todas as músicas do álbum por novas quando tocávamos ao vivo.
Eu tinha saído do emprego para promover a banda, escrevendo para centenas de pessoas. Uma delas respondeu com uma proposta surpreendente: Rik Ede tinha um pequeno estúdio perto do País de Gales chamado Gamesound e produzia músicas exclusivamente para jogos eletrônicos. Ele adorou nossas músicas e nos convidou para gravar com ele de graça. Só de poder gravar algumas músicas novas já era motivo o suficiente para nós, então fomos até lá. Outra coisa é que a música seria masterizada em som surround 5.1, algo que Rik jurava que iria mudar o jeito de as pessoas escutarem música!
Tocamos quatro ou cinco músicas e Dreadful Blonde foi a que Rik encaminhou para o IndyCar 500 (aqui ele se refere ao IndyCar Series), creio que por meio de uma desenvolvedora chamada Brain in a Jar. A música foi aceita, com a observação de tirar a palavra ‘PlayStation’ para não ter problemas nas outras plataformas em que o jogo seria lançado. Fomos avisados de que não haveria dinheiro envolvido e compramos a ideia vendida a muitas bandas de que nos daria exposição. Quando o jogo chegou ao top 10 em vendas nos EUA, percebemos que provavelmente fizemos a escolha errada.
R2PG: Não só a Dreadful Blonde, mas Open Heart Surgery também foi para o jogo, ambas em versões muito diferentes das do álbum Too Hip for the Room. Por que as diferenças?
PE: É mesmo, esqueci dessa!
É sempre a mesma história quando um produtor vai te gravar. Eles têm suas próprias ideias sobre como suas músicas devem soar. Se você der sorte, seu produtor tem ouvidos mágicos e pode ver potencial em coisas que você não viu como compositor e banda, mas é difícil. Primeiro que você está acostumado a ouvir sua música da maneira que escreveu e já toca, então é chocante logo de cara. E depois, você sempre sente que escreveu de um determinado jeito por bons motivos, então incomoda quando um produtor quer fazer mudanças radicais no seu trabalho.
Em contrapartida, eles trazem objetividade, expertise sonora e supostamente conhecimento sobre o que está em alta na indústria. Então é sobre ter esperança de que o produtor vai encontrar o potencial que você deixou passar. Para fazer sucesso, toda a criação deve ter um elemento de cooperação e esse é o risco que se toma. Pessoalmente, preferi ambas as músicas nas versões originais, com compassos diferentes e uma vibe mais fora de controle. Também acho que, sendo um jogo de corrida, o produtor quis dar um ar de “música para dirigir” ao invés da mistura de Drum & Bass e indie originais.
Mas a popularidade das músicas com os jogadores implica que talvez ele tivesse razão!
R2PG: O jogo foi lançado em 2003 e o álbum Too Hip for the Room em 2005. O jogo teve algum impacto na banda? Como alguém chegando em vocês após um show e comentando “Ei, eu ouvi esse som num jogo de corrida semana passada” ou outro modo qualquer?
PE: Too Hip for the Room na verdade saiu em 2001 ou 2002. Mas a banda nunca teve representação ou distribuição formal, então apareceu online em lugares e momentos diferentes. Sem uma companhia para organizar e centralizar a divulgação do nosso nome por aí e sem reconhecimento pelo jogo, não acho que nenhum dos pontos se conectou para criar qualquer feedback útil para nossa reputação. É como se tivéssemos rolado duas pedras gigantes para o topo de duas colinas diferentes e nunca vimos uma dar impulso à outra.
R2PG: Nossa, eu sou um exemplo disso: toda a informação do álbum que encontrei diz que saiu em 2005, mas isso faz mais sentido.
A banda eventualmente cessou as operações e agora você faz parte da The Fleas. Pode contar como uma terminou e a outra começou?
PE: Se você já viu o filme The Commitments, há uma verdade central no plot sobre a energia. Em uma banda, se você der sorte, vocês têm química juntos, bom material e organização suficiente para embalar. Conforme o embalo aumenta, o entusiasmo e a esperança acompanham. Eventualmente, chega um ponto em que esse entusiasmo e esperança não atingem o interesse de um público externo que deveria elevar a banda a outro patamar. Esse é o ponto de perigo, porque pode ser muito difícil lidar com as coisas não acontecendo na velocidade em que se gostaria, mas ainda há aquele entusiasmo e esperança fazendo barulho dentro da banda. E se essa energia não tem pra onde ir, pode tombar em si mesma e se transformar em algo mais sombrio.
Em The Commitments, é quando o Mr. Big vai ver a banda tocar e toda a união explode quando seus sonhos nunca são realizados. Com a Ruocco, nós tínhamos um álbum, estávamos naquele grande jogo de corrida, eu havia reunido uma equipe jurídica e financeira, fazíamos shows e escrevíamos coisas novas, tentando conseguir um empresário para nos ajudar a juntar tudo isso. Mas empresários são uma espécie estranha e difíceis de conseguir no lugar e na hora certa. Alguns nos cheiravam, cutucavam e sumiam. Gravadoras queriam falar com empresários, não com bandas, e sentir confiança para investir em uma estrutura sonora organizada.
A cena musical estava realmente dispersa e começamos a nos frustrar. Isso nos levou a procurar a culpa um no outro. Tudo isso nos levou a uma confusão que nos separou. Eu saí porque sentia que os outros não estavam comprometidos o suficiente, o que não era verdade e eu me arrependo hoje. O resto da banda continuou mais um tempo, mas aquele embalo especial e a dinâmica que tínhamos juntos havia acabado. Somos todos amigos agora, mas nosso momento passou. Comecei uma nova banda, The Fleas. Levou muito tempo para juntar uma nova “família”, e passaram mais de 40 membros até encontrar uma combinação que deu liga.
R2PG: Vocês já jogaram IndyCar Series?
PE: Eu joguei algumas vezes e achei muito bom. É engraçado que na Inglaterra ninguém fala da Indy. Aqui o negócio é Fórmula 1, então o jogo não vendeu tanto por aqui, se é que foi lançado aqui. Entretanto, Mike, nosso guitarrista, encomendou o jogo e eu experimentei no PlayStation 2 dele.
R2PG: Mais alguma coisa que gostaria de falar para nossos leitores?
PE: Acho que não, mas eu agradeceria se você informasse a página da The Fleas. Obrigado, Gabriel.
R2PG: Eu já planejava fazer isso mesmo. Também gostaria que os fãs que quisessem ajudar financeiramente tenham um meio para fazê-lo.
PE: PayPal funciona? https:/PayPal.me/Piers934
Legado
Eu sei que essa história não está no lugar ideal e nem todos os amantes de RPG de mesa vão ver utilidade nisso, mas essa história é épica – e não é para isso que nós jogamos?
Em campanhas grandes, fico pensando que algo que pode não ter aparentemente dado em nada na primeira sessão desencadeia algum evento várias temporadas depois.
Imagine salvar um cara mesquinho e egoísta que nem merecia ser tão salvo assim e que nem agradeceu, mas anos depois voltar para a região e poder se instalar num vilarejo que ele fundou?
A banda Ruocco merecia ser salva. O som é bom, quem ouvia gostava, mas a maré dos acontecimentos engoliu mais uma das incontáveis canoas de boas bandas que estão espalhadas por aí.
Mas eles deixaram um legado. Hoje, o YouTube já catalogou o álbum Too Hip for the Room completo além de você os encontrar no Spotify.
Também vale a pena jogar o IndyCar Series. É um bom jogo e as versões das músicas da banda são exclusivas e muito boas de se ouvir também.
Links interessantes:
PayPal direto para o artista: https:/PayPal.me/Piers934
The Fleas:
www.thefleas.biz
Contato:
32 Caldbeck Drive, Woodley, Reading, RG5 4LA
0797 212 0836
A/C: Piers
Ruocco:
Crítica ao álbum que encontrei durante as pesquisas finais para este artigo: https://www.musesmuse.com/00000283.html
Spotify: https://open.spotify.com/intl-pt/artist/2AQCA5RMBlu5syCOhhV4Wp
Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=k825pEjgInY&list=OLAK5uy_m3eKa6zasr3yAeUqCNg-UM-8_2B_bT_BE
Trilha sonora do Indy Car Series: https://www.youtube.com/playlist?list=PLjK2qMo9WudKGqaOCqthUqMmgrLAd9ZLH
Jogo:
Indy Car Series para Windows: https://www.myabandonware.com/game/indycar-series-e7z
Indy Car Series PS2: https://coolrom.com/roms/ps2/41497/IndyCar_Series.php