Lobo-amago-da-meia-noite

Lobo – Um conto de fantasia sombria

Lobo é um spin off da serie de fantasia sombria Âmago da meia-noite. Então se você gostar do que ler aqui, da um clique e confere os outros capítulos!

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Lobo

Um uivo distante e longo é ouvido. Era um lobo solitário, mas não como Gaflard. Ele era completamente o oposto dos típicos lobos solitários que se achavam naquela floresta tenebrosa. Seu tamanho e força eram superiores a qualquer líder de alcateia que havia encontrado e tinha aquele problema do cheiro. Nenhum deles cheirava como ele.

Todo cheiro era único. Era difícil esquecer o cheiro de outros, principalmente os mais fortes, mas todos eles tinham um mesmo tipo de cheiro, era igual no todo, mas diferente nos detalhes. Só que Gaflard não conseguia enquadrar seu odor junto dos outros. Isso o angustiava mais do que admitia, todavia, para a sorte de Gaflard, era fácil afastar aqueles pensamentos pois aquela noite ele só precisava caçar e saciar seu apetite.

Ele andava pela floresta, o sol mal sumira atrás das copas e a densa mata daquela região já lançava trevas em todas as direções. O Lobo estranho já esteve em florestas de todo tipo e sabia que aquilo não era normal. Não era apenas uma questão de inverno e verão, estavam no meio da primavera e nenhuma flor brotava em canto algum, exceto pelos lírios gigantes do sono. Essa flor liberava uma toxina no ar que fazia qualquer criatura dormir, o que ocorria depois, Gaflard nunca se aproximou o suficiente para saber, mas no amanhecer, nenhum corpo sobrava nas redondezas.

O aroma de cada item ao seu redor o guiava. A madeira das árvores, a seiva, a folha, a marcação de território de uma matilha. Infelizmente, o cheiro da presa que ele passou a sentir, estava dentro do território de lobos. Um grupo que ele evitava e chamava de Os Numerosos. O motivo de manter a distância e o nome do grupo era autoexplicativo. Eles eram muitos e suas regras de sociedade eram diferentes.  

Em outras alcateias, quando o líder era derrotado, a comida da caça ficava com o vencedor e os subordinados esperavam as sobras de orelhas baixas, mas Os Numerosos não tinham respeito, isso com certeza era mais uma das peças que aquela floresta de trevas causava. O comportamento deles, no geral, era sempre imprevisível e com frequência duelavam pela liderança.

Gaflard ponderou se seguia o rastro ou não. Era uma caça viva, coisa rara naquele local e fazia tempo que ele não se alimentava direito. Animais comuns eram massacrados por bestas e feras atípicas. Sua última refeição quase lhe custou a vida. Foi uma criatura dura, de odor ímpar, similar a um cavalo gordo, mas com três cabeças largas de cobras. Seu gosto e textura não foram agradáveis. Quando terminou, o grupo dos Canibais devoraram o resto.

Os Canibais eram outra matilha repugnante. Mais de uma vez ele foi alvo deles, porém sua força era muito superior à do líder que sempre fora destroçado e logo em seguida devorado pelos subordinados. A fêmea líder deles tentou seduzir Gaflard uma vez. Estava com um forte perfume embriagante e montava em seu lombo pedindo que o fizesse nela. Era uma fêmea deslumbrante, mas algo não parecia certo. Ele não se sentia igual a eles, por isso a mordeu e ameaçou os outros. Queriam que ele fosse seu líder, outras fêmeas se ofereceram, mas ele não quis.

Pela segunda vez um uivo percorreu a noite. Gaflard eriçou as orelhas. Os Numerosos já estavam atrás da caça. Isso foi o gatilho para ele se decidir. Agiu por instinto e seguiu o rastro da presa. Alguns dos batedores da alcateia já estavam no encalço também. Logo se encontrariam.

Ele correu pelos troncos compridos das árvores longas. Eram maiores do que a maioria das árvores que se lembrara de ter visto. O som da perseguição ficava mais nítido a cada passo. A matilha também se deslocava mais atrás, eles tinham um líder deferente, não era novidade.

Já bem próximo da caçada, o perfume da presa se intensifica, era agradável a ele, um cheiro novo naquele lugar, mas por algum motivo era familiar. Devia ser apenas mais uma brincadeira pregada por essa floresta. O fedor de um dos batedores se afasta, estavam tentando flanquear a caça. Gaflard acelera a corrida.

Ele escutou um gemido e o som de um tombo, algo estava errado. O som da caça era incomum, uma voz melodiosa e agradável. Um dos lobos rosnou. Uma árvore bloqueava sua visão, mas ele conseguia ver um lobo pardo se preparando para o ataque. Deu tudo de si e pulou. O outro investia na presa quando foi arrebatado no ar pela poderosa mandíbula de Gaflard.

Sentiu o pescoço da vítima se partir sob suas presas. Quando aterrissou, o lobo já estava inerte em sua boca. Apenas deixou o corpo cair no chão e ameaçou o outro batedor com os olhos, foi o suficiente para fazê-lo recuar dois passos. Gaflard iria se preparar para a chegada do restante dos Numerosos, todavia ficou surpreso com a “caça” diante de si.

Ela era linda, de tal forma que sua beleza era incomparável com qualquer outra fêmea que já tivesse visto antes. Não possuía pelos, apenas uma grande quantidade de longos fios prateado na cabeça. Sua pele era branca e nua, apenas coberta por algum tipo de pelagem sofisticada, que estranhamente não era dela, mas realçava sua beleza. Seu corpo era peculiar, esguio e magro, bípede, apesar de estar sentada no chão e as patas frontais diferentes das traseiras. Seu peito era composto de duas redomas inchadas e escondidas.

O rosto fino, de nariz curto, carregava olhos verdes e assustados. Nas laterais, duas orelhas pontudas e uma pedra pequena cravada em cada uma. Havia súplica no olhar dela e Gaflard sentia uma empatia que nunca sentira por outro ser. Aquilo trouxe imagens e lembranças de uma vida que ele sonhava as vezes, entretanto quando despertava, quase nunca sabia qual era o conteúdo do sonho, lembrando apenas de pequenos detalhes.

Um a um os Numerosos foram chegando e mostrando seus dentes com ódio e receio. Gaflard se aproximou da fêmea esguia que fechou os olhos esperando o pior, porém, ele apenas a contornou e se enroscou, mantendo-a protegida. Apontou o focinho para a matilha e rosnou. O recado foi dado, ninguém tocaria na caça, eles recuaram mostrando um comportamento atípico. Gaflard entendeu quando o líder apareceu.

Era um lobo grande, maior que ele, pelos espessos e jovens. Sua boca parecia maior em tamanho e em quantidade de dentes compridos. O odor não era de um lobo normal, mas também não era parecido com o dele, era um cheiro grotesco.

O lobo grotesco ladra para seus subordinados e eles aguardam temerosos, mais de trinta se agrupavam e o número só crescia a cada instante. Gaflard entendeu no mesmo instante que aquele poderoso novo líder mudou as regras dos Numerosos.

A fêmea esguia começou a tremer, o suor frio que saía de sua pele passou a exalar o cheiro de medo. Ela se assustou com um pulo quando Gaflard a empurrou para o tronco de uma árvore e deu as costas a ela, seguindo para a frente do Grotesco. A Esguia ficou boquiaberta e pequenas lágrimas de esperança brotaram-lhe nos olhos.

O Grotesco rosnou fazendo seus pelos se arrepiarem. Gaflard o encarou inexpressivo, seus focinhos quase se tocando. A diferença de altura era quase uma cabeça a mais. Os Numerosos sorriam abertamente, a fêmea líder deles manteve distância, estava sem uma orelha e com ferimentos na nuca.

– Crack!!

A primeira mordida estoura bem na frente de Gaflard que mal conseguiu evitá-la. Grotesco o empurra com seu corpo e tenta um novo ataque no pescoço, que foi evitado com um recuo. Mais uma vez o galante lobo solitário estava próximo da fêmea esguia. Eles trocam olhares e por um instante ele tem a sensação de que ela o entende.

Gaflard avança e investe contra o focinho do seu oponente. Grotesco tem uma reação inferior e seu rosto é ferido. Os dois empinam as patas dianteiras tentando uma melhor posição de combate, seus corpos se chocam e grotesco usa de sua altura para subjugar seu adversário e destruir seu rosto, porém, Galflard sai do ataque apenas com alguns arranhões e contra-ataca o pescoço.

Para a surpresa do lobo solitário, a pele de seu inimigo era muito resistente e ele mal teve tempo de encaixar direito uma segunda mordida, pois Grotesco mostrou superioridade em força, arremessando-o no chão com uma patada. Sem deixar a chance passar, o lobo líder morde a pata de Gaflard e a quebra.

– Não! – A Esguia grita em desespero.

Grotesco achou que era sua vitória quando largou a pata de seu inimigo, mas Gaflard se impulsiona com três patas e morde o lombo de seu agressor, ficando agarrado. Os dois caem no chão e rolam.

O líder dos Numerosos abocanha o flanco de Gaflard e peleja para desengajar-se, mas o lobo galante se recusa a largar. Então, como se nada tivesse ocorrido, Gaflard pisa com as quatro patas no chão e derruba Grotesco. Os cortes no focinho dele começavam a sumir e sua pata, apensar de ainda ferida, parecia nunca ter partido o osso.

Os outros lobos da matilha começam a rosnar e se encolerizar. Antes de Grotesco se recompor, Galflard puxa com os dentes a pele da barriga e rasga todo o conteúdo interno do inimigo, espalhando-o no chão.

O líder geme e se debate com suas enormes patas, mas Gaflard enfia a boca na ferida e puxa mais órgãos internos, melando-se em sangue. Os outros lobos da matilha ameaçavam atacar a qualquer instante. Foi aí que, se enchendo do sabor da vitória, Gaflard reúne todo o ar nos pulmões e solta um poderoso uivo.

Alguns dos Numerosos baixam a cabeça, outros instantaneamente vão embora e poucos continuam mostrando os dentes ameaçadores. Ao fim do uivo que ecoa por toda a floresta, a fêmea líder dos Numerosos se aproxima de Grotesco, encosta o focinho em seu corpo, depois olha demoradamente para o algoz e vai embora. Todos os outros a acompanham sem resistência. O batedor que estava a alguns metros da fêmea esguia, também se retira, dando a volta para não passar perto deles.

Apesar de vermelho, era possível ver que os arranhões no focinho de Gaflard haviam sumido por completo. Fato constatado pela esguia ao se aproximar com cautela dele. Ambos se olharam longamente, ela estendeu a mão devagar para tocar nele, quando o alcançou, uma explosão de memórias veio à mente do lobo.

Uma mulher era morta. Uma criança tentava fugir. Um homem parcialmente lobo perfurava seu peito com as garras e mordia-lhe o pescoço. Aquilo causou dor e confusão em Gaflard, ele se afastou da esguia com um salto e fugiu correndo para os confins da floresta.

Aquelas memórias e pensamentos o atormentavam. Já não sentia fome, nem sede e passou a andar desleixado por qualquer canto, imaginando o que seria tudo aquilo. Caminhou por horas, talvez dias, não saberia dizer. Descobriu que tinha mais lembranças com a mulher e criança e quando se deu conta estava chorando sentando ao pé de uma árvore. Naquela noite uivou tristemente para uma lua crescente que se exibia no céu, incompleta.

Dormiu por muito tempo e acordou tarde da noite. Andou e andou por alguns quilômetros, até seu olfato captar um odor fétido novamente, ele não conseguia compreender, era o cheiro do lobo grotesco. Intrigado, resolveu voltar e testemunhar o que estava ocorrendo.

Ao se aproximar ele percebeu, o cheiro de sangue estava muito forte e ainda havia algum outro odor peculiar junto. Logo, Gaflard passou a se perguntar: será que o Grotesco teria uma habilidade de se curar similar a minha?

Chegando ao local do cheiro, o que se encontrava lá era apenas a carcaça do Grotesco, alguém removera todos os órgãos e carne, deixando apenas a pele e o crânio. Ainda estava úmido e com sangue coagulado em algumas partes. Gaflard detectou mais um odor na carcaça, ele aproxima seu focinho para farejar mais a fundo, quando uma criatura orelhuda e pequena surge embaixo do que era grotesco.

Usando da surpresa, ela perfura com duas adagas os dois olhos do lobo, que recua cego. O pequeno humanoide estava repleto de sangue velho pelo corpo, Gaflard se guia pelo cheiro e abocanha o ar atrás dele.

– Ande logo Gogue, esta coisa vai me pegar! – Uma voz rouca é ouvida logo bem à frente do rosto de Gaflard.

– Fique calmo irmão – Uma segunda voz é ouvida distante, no alto de alguma árvore – A bruxa só nos deu uma seta com a ponta de prata.

Gaflard escutou um assobio no ar e alguma coisa acertou sua cabeça em cheio, cambaleou e se afastou às cegas, se guiando pelo cheiro. Mesmo sem ver nada ele conseguia imaginar todo o caminho que seguia, pelos troncos da floresta. As duas criaturas logo atrás dele conversavam, mas suas vozes eram cada vez mais distantes.

O lobo solitário deitou-se cansado e mesmo na escuridão da cegueira, ele viu a mulher de suas lembranças sorrindo parada, com os pés descalços tocando as folhas ressecadas.

– Vem – Sussurrou Onde deitou um lobo, levantou-se um homem e foi.

Fim…

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